terça-feira, 16 de outubro de 2012

Kisses from Kairo - O público do Cairo



Sábado, 31 de março de 2012

Por Luna do Cairo
Traduzido por Lalitha    

Uma das vantagens de ser uma bailarina contratada no Cairo é que você pode se apresentar bem regularmente. Algumas de nós trabalham várias vezes na semana. Outras, várias vezes por dia, dependendo do local, da popularidade da bailarina, e, hoje em dia, se há movimento o suficiente. E o que poderia ser melhor do que isso? Fazer o que você ama todo santo dia. Parece a situação ideal de trabalho. E é. Exceto que eu não estava tão certa disso quando eu fui contratada. E essa é a razão:

Toda vez que a arte se torna um emprego, você corre o risco de perder a sua paixão. Isso porque o “emprego” inclui obrigações, rotinas, e dinheiro, e há alguma coisa na arte que é contrária a tudo isso. Arte é um presente de Deus (ou do universo ou do que quer que você queira chamar). Não é algo que podemos nos forçar a fazer a qualquer momento. E é por isso que ouvimos tantas vezes a palavra “inspiração” associada à arte. O artista busca e espera pela inspiração. E quando ela vem, o artista se torna apaixonado e produz o seu melhor trabalho. E como a inspiração não pode ser forçada nem apressada, parece ridículo fazer da arte nosso emprego, da mesma forma que faríamos da medicina, do direito ou lavar roupa. Mesmo assim, de alguma forma, depois de um ano me apresentando toda noite, eu não perdi nem um grama da paixão pela dança. Ao contrário, o que eu notei é que a minha paixão pela dança aumentou, e é altamente dependente do entusiasmo do público.

O público é realmente muito importante na dança oriental. E isso porque a dinâmica bailarina-público é muito mais íntima do que em outras danças. Ela é também mais interativa. Diferente do ballet e de outras danças de palco, nós realmente vemos o nosso público e fazemos contato visual com ele. Nós sabemos quem está feliz, quem está interessado, quem se emocionou, quem está de saco cheio, quem está inseguro, quem está sem graça, quem está imaginando coisas inapropriadas, quem está nos julgando, etc. Nós podemos puxá-los dos seus lugares e fazê-los dançar, podemos tirar fotos, e até brincar com eles. E tudo isso afeta o nosso humor, e tem impacto na nossa apresentação. Dançar para um público que já está aplaudindo antes mesmo de você entrar no palco faz a apresentação ficar melhor do que entrar num ambiente cheio de turistas sonolentos e religiosos de cara amarrada.

Provavelmente eu já me apresentei para todo o tipo de público imaginável. Egípcios, árabes, turistas, colegas bailarinas, amigos, inimigos, ricos, pobres, religiosos, não religiosos, políticos, celebridades, Irmandade Muçulmana, somente mulheres (e uma vez, somente homens), educados, apreciativos, rudes, agressivos, engraçados, loucos, sonolentos, pessoas de visão limitada e arrogantes, nojentos. Eu já tive (não)platéia religiosa saindo antes e durante o meu show, e turistas cansados e com fuso-horário trocado literalmente dormindo durante toda a apresentação. Eu também já tive públicos aplaudindo, fazendo zagharouta (N.T.: o famoso lilililililiiiii) e gritando de alegria. E públicos lançando flores em mim, me beijando, e me cobrindo de elogios enquanto eu estava no palco! :) Apesar de eu (obviamente) preferir alguns públicos a outros, cada um me ensinou alguma coisa sobre mim mesma, sobre a natureza humana, e mais do que tudo, sobre a dança.

Sem dúvida, a coisa mais importante que eu aprendi é que a dança do ventre é uma dança social (e eu sou uma pessoa “social”, por mais que eu pensei que não sou). É uma dança que acontece em ocasiões festivas como casamentos, hinnas (despedidas de solteira), festas de aniversário, subuas (uma espécie de batizado), etc. Eu já “sabia” disso desde que era iniciante, lá em Nova Iorque. Mas eu sabia disso num nível intelectual, abstrato. Agora, eu sinto esse conhecimento diariamente. E eu sinto de uma forma diferente também. Como o público e a bailarina são, enquanto durar o show, as suas respectivas “sociedades”, eles se alimentam da energia um do outro. Dito isso, eu pensei que seria interessante mapear os tipos de público que já encontrei, os seus requisitos, e explicar como cada um afeta o meu humor e a minha dança de forma diferente.

Vou começar pelo público egípcio. O público egípcio é sem sombra de dúvida o melhor para dança do ventre. Ninguém gosta mais e entende melhor a música e a dança egípcias do que os egípcios. Na maioria das vezes, os egípcios ficam ansiosos para ver a bailarina e dançar com ela. Eles aplaudem antes, durante e depois do show. Homens e mulheres se convidam para dançar com ela. Alguns nem pensam duas vezes sobre o assunto. Outros, especialmente mulheres de véu, sabem que “não deveriam”, mas não conseguem resistir. Eu adoro vê-los se soltando na pista de dança. E eu adoro ver a reação de outras pessoas da platéia, especialmente dos turistas que acham que mulheres de véu não dançam. :)

Eu faço minhas melhores apresentações para públicos egípcios. Ou pelo menos acho que faço. Eu sei que eles entendem o que estou fazendo, então me sinto livre para apenas dançar. Eu fico livre para me emocionar, e para ser eu mesma. Não preciso me preocupar se estou fazendo muito pouco, do jeito como me preocupo quando danço para públicos estrangeiros. Se me preocupo com alguma coisa, é se estou fazendo demais. A dança do ventre egípcia é mais sutil e relaxada do que as versões mais acrobáticas que vemos no Ocidente. É sobre sentimento e emoção. Egípcios não precisam ver você se contorcer toda, ficar de ponta cabeça, ou fazer todos os movimentos que você já aprendeu o mais rápido possível, só porque você consegue. Eles precisam saber que você entende a música, que sabe o que está fazendo e, o mais importante, que você está se divertindo. Eles também querem ver uma mulher bonita na frente deles, mas essa é outra história.

Entretanto, a coisa que mais gosto do público egípcio é o fato de que eles estão interessados. Eles usualmente te dão algum tipo de feedback, e, se necessário, críticas construtivas. Eles te dizem se gostaram ou não da sua apresentação, da sua roupa, do seu cabelo. Eles te dizem se você precisa ir mais devagar, se acalmar, ou marcar algum detalhe. Eles te dizem se você precisa ganhar ou perder peso, e que você não deveria usar aquela cor. E se eles realmente gostarem de você, eles vão te comparar a bailarinas egípcias lendárias e te contratar para dançar no casamento dos seus filhos. :) Em resumo, os egípcios querem te ver como a melhor bailarina que você pode ser. E isso é algo que eu aprecio muito, assim como críticas construtivas estão em falta na nossa comunidade de dança. As bailarinas enaltecem as suas amigas e descascam as inimigas sem realmente pensar na qualidade do seu trabalho, então é bom ouvir um retorno objetivo de observadores desinteressados que não tem um machado para afiar.

Por mais que eu ame dançar para os egípcios, eu estaria mentindo se dissesse que eles são todos tão entusiásticos como acabei de descrever. Tem alguns que simplesmente não gostam nem de música nem de dança. E tem alguns que gostam, mas não se sentem a vontade de demonstrar isso em público. Eu vejo muito disso com os que eu chamo de “nouveau riche” egípcios – a nova classe egípcia com dinheiro e profissões de verdade, carros bacanas, roupas ocidentais e jeito pretensioso. São pessoas que se acham importantes que ficam com vergonha de tudo o que é egípcio, especialmente dança do ventre (como se no Ocidente não tivéssemos garotas seminuas que dançam por dinheiro). Esses são os egípcios que fingem que não estão te assistindo dançar, e que fingem que não querem levantar para dançar com você.

E também tem a turma religiosa. Com exceção de um grupo da Irmandade Muçulmana que encontrei há um mês, praticamente todo o público religioso sai do recinto quando eu danço, ou então eles ficam sentados de cara amarrada durante o show inteiro. Na verdade, esse é o pior público para se apresentar. Como se dançar publicamente com uma roupa reduzida não precisasse de coragem o bastante, essas pessoas fazem eu me sentir como uma puta pecadora de baixo nível.

Toda vez que danço para um grupo desse tipo, acabo me pegando sendo toda psicanalítica (E como não seria assim? Eles invadem o meu espaço mental). Eu imagino todas as coisas que eles estão pensando sobre mim. Como eu provavelmente irei para o inferno porque sou bailarina. Eu começo a pensar sobre religião e política – não os assuntos que quer pensar num palco. Então eu começo a travar. Meus movimentos se tornam menores e menos energéticos. Meu sorriso diminui. Eu evito fazer contato visual com todo o mundo, até mesmo as mulheres. Em resumo, eu recuo. Eu simplesmente não me sinto a vontade sendo julgada desse jeito enquanto tento fazer um espetáculo. É desnecessário dizer, esses tipos de pessoa são públicos horríveis. Mas para a minha sorte, a maioria dos egípcios para os quais eu danço não é assim. Eles ficam felizes de me ver dançar, e eles chegam até mesmo a tirar fotos comigo antes que eu suma no camarim.

Apesar de fazer meus shows “sob medida” para o público, minha única constante é não fazer contato visual com os homens egípcios entre os expectadores. Nunca. A não ser que eles não estejam acompanhados de mulheres. As mulheres costumam ficar um pouco irritadas com bailarinas que olham diretamente para os seus homens, especialmente no dia do seu casamento. Então eu não o faço. Em respeito a elas. Faz com que elas se sintam mais confortáveis, e as assegura que eu não sou uma vagabunda-maníaca atrás dos seus homens.

Públicos estrangeiros são um pouco diferentes. Para alguns, assistir uma bailarina de dança do ventre é o ponto alto da sua viagem ao Egito. É fácil ver quem são eles, simplesmente pela forma como os olhos deles brilham quando você entra no palco. Eles começam a sorrir e a bater palmas, e não conseguem tirar os olhos de você. Esse tipo de turista me faz amar o meu trabalho. Eles querem me assistir, e eu quero dar a eles um bom show. Funciona muito bem.

Existem outros, por outro lado, que tornam o meu trabalho mais difícil. De vez em quando, eu acabo por dançar para um grupo de turistas cansados, com jet lag, que estão literalmente dormindo nas cadeiras antes mesmo de eu entrar em cena. Nada nesse mundo consegue acordá-los. Nem a minha banda, nem eu. Eu poderia estar de ponta cabeça e fazer 11 giros seguidos que eles ainda assim não iriam acordar. Dançar para esse tipo de público é mais do que frustrante, mas novamente, não posso realmente culpá-los. Eu sei o que é apertar todo o Egito numa viagem de 1 semana. Entre o jet lag, a exaustão, e a intoxicação alimentar, você fica com vontade de se matar. Mesmo assim, quando estou no palco em frente a um monte de turistas sonolentos, percebo que eu fico com raiva, e não com pena deles. Eu perco interesse no que estou fazendo, e mal consigo esperar a hora de sair do palco e fazer algo mais construtivo.

Depois dos egípcios, o público que eu mais gosto é a de colegas bailarinas de dança do ventre. Desde que comecei a me apresentar no Nile Memphis há um ano, eu dancei para bailarinas do mundo inteiro. Como bailarinas, elas entendem o que estou fazendo e sabem ser um bom público. Elas também são as mais críticas. Mas a energia é sempre forte e positiva. E elas sempre se juntam a mim na pista de dança, o que é muito divertido. :)

A grande diversidade de públicos aqui no Cairo é fantástica. E apesar de eu não gostar igualmente de dançar para todo o mundo, eu aprendi alguma coisa com cada show – como, por exemplo, o que funciona com estrangeiros, o que funciona com os egípcios, etc. A melhor parte disso tudo, entretanto, é que você nunca sabe como é o público antes de entrar no palco. É sempre um elemento surpresa. Meio que me lembra da “caixa de chocolates” de Forrest Gump. Você nunca sabe o que vai encontrar. :)

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